I
Rogério, solteiro, 38 anos e já quase não tinha cabelos no topo da cabeça. Calvice, herança familiar, recessivo na parte do pai, dominante nos genes da mãe. Gostava de jogar bola, mas a barriga, que lhe impedia de tocar os próprios pés, o impedia de ter um bom desempenho em campo. Tendência a engordar, puxou do lado paterno: senhor Afonso, 65 anos e mais de 100 quilos. “Ê, Rogério, por que não rola junto com a pelota?”. O pessoal do escritório ria.
Coitadas são as nossas famílias. Mesmo tendo as melhores das intenções, a culpa de todas as nossas frustrações sempre recai sobre os nossos parentes. Culpa de nossa família, que nos acolhe ou nos expulsa, que nos agrada ou nos repudia.
Era assim. Rogério sempre se sentia claustrofóbico entre as pessoas que passeavam naquela sala apertada. Fumaça de cigarro, cachimbo. Mais tarde culparia o vício paterno e as reuniões familiares pelo câncer na faringe que viria a ter e pelo qual morreria. Em sua mente, ele ironizava a risada retumbante de seu velho pai e a maneira com que Dona Madalena, bonita, olhos azuis vívidos, tentava agradar a todos. Quando chegara, foi recepcionado com aquele carinho típico de mãe. “Mas, meu filho, está cada vez mais gordinho, não?”. Risadas. Fora o primeiro golpe na auto-estima, a primeira casca que soltara da proteção que sempre construía e onde aprisionava um monstro furioso.
Sentado, perto da estante de livros, estava o tio que todos consideravam inválido. Já bastante idoso, mas sem perder aquele brilho inteligente que todo bom leitor sustenta em seu olhar. Alberto usava óculos finos, pousados na ponta de seu odunco nariz. Quase não falava. Nada demais para um velho. Seu silêncio era apenas interrompido às vezes para uma risada singela, sarcástica. Os olhos dos dois homens, em lados opostos da sala, se cruzaram e, junto com o cheiro de pele já idosa, veio a frase “eu também os odeio...”, que ressoou durante todo aquele feriado natalino, como o consolo de que nem todo ódio é único.
II
Você ligou para a residência do Rogério. Favor deixar o recado após o sinal... BIP
Rogério, solteiro, 38 anos e já quase não tinha cabelos no topo da cabeça. Calvice, herança familiar, recessivo na parte do pai, dominante nos genes da mãe. Gostava de jogar bola, mas a barriga, que lhe impedia de tocar os próprios pés, o impedia de ter um bom desempenho em campo. Tendência a engordar, puxou do lado paterno: senhor Afonso, 65 anos e mais de 100 quilos. “Ê, Rogério, por que não rola junto com a pelota?”. O pessoal do escritório ria.
Coitadas são as nossas famílias. Mesmo tendo as melhores das intenções, a culpa de todas as nossas frustrações sempre recai sobre os nossos parentes. Culpa de nossa família, que nos acolhe ou nos expulsa, que nos agrada ou nos repudia.
Era assim. Rogério sempre se sentia claustrofóbico entre as pessoas que passeavam naquela sala apertada. Fumaça de cigarro, cachimbo. Mais tarde culparia o vício paterno e as reuniões familiares pelo câncer na faringe que viria a ter e pelo qual morreria. Em sua mente, ele ironizava a risada retumbante de seu velho pai e a maneira com que Dona Madalena, bonita, olhos azuis vívidos, tentava agradar a todos. Quando chegara, foi recepcionado com aquele carinho típico de mãe. “Mas, meu filho, está cada vez mais gordinho, não?”. Risadas. Fora o primeiro golpe na auto-estima, a primeira casca que soltara da proteção que sempre construía e onde aprisionava um monstro furioso.
Sentado, perto da estante de livros, estava o tio que todos consideravam inválido. Já bastante idoso, mas sem perder aquele brilho inteligente que todo bom leitor sustenta em seu olhar. Alberto usava óculos finos, pousados na ponta de seu odunco nariz. Quase não falava. Nada demais para um velho. Seu silêncio era apenas interrompido às vezes para uma risada singela, sarcástica. Os olhos dos dois homens, em lados opostos da sala, se cruzaram e, junto com o cheiro de pele já idosa, veio a frase “eu também os odeio...”, que ressoou durante todo aquele feriado natalino, como o consolo de que nem todo ódio é único.
II
Você ligou para a residência do Rogério. Favor deixar o recado após o sinal... BIP
Olha, filho. Eu sei que você não gosta de nossas reuniões familiares. Percebo em seu olhar, o modo como foge de meu carinho, como não gosta que eu fale de sua barriguinha na frente de seus tios. Falando nisso, que barriguinha, hein? Lembro de quando a mordia, junto com as dobrinhas do bebê gordinho que você sempre foi. Você vai ser, para sempre, o meu bebê, tá? Tô ligando para dizer que aquele seu tio, o Alberto, morreu. Pois é. Estava inválido já, o coitado, não? Tinha cheiro de gente velha, as vezes eu pensava ver poeira em suas rugas. Enfim, morreu feliz, dormindo na casa de repouso. Percebi que conversaram no último natal. Percebi que vocês se aproximaram naquele feriado, por isso achei que eu mesma precisava te dar esta notícia. Falando nisso, como vai aquele probleminha na garganta? Você precisa ir ao médico, menino! Eu sei que já é grandinho, que já tem 38 anos e bla bla bla, mas sou mãe e o meu coração fica apertado. Estou tentando convencer o seu pai a parar de fumar cachimbo. Deve ser por isso que você tem essa voz tão rouca, o Afonso fumou tanto durante a sua infância. E a análise, como vai? Os probleminhas com a auto-estima, como vão? Espero que bem, lembro de quando você explodiu naquele domingo. Era outra pessoa, era um monstro, não o reconhecia. Ai, filho, desculpa falar assim, dessas coisas agora. É que estou preocupada. Só espero que a morte do Alberto não piore a sua situação. E o pessoal do escritório? Ainda rindo da sua pancinha? Espero que o futebol de quinta-feira esteja fazendo efeito sobre o seu peso. Outra coisa, comprei um remédio para calvice ótimo, um que eu lembro que o meu pai usava. Ele faz crescer cabelo! É ótimo, meu filho. Estou mandando amanhã mesmo, tá bom? Bom, vou indo. O velório vai ser hoje, durante a noite, e o enterro amanhã. Apareça se puder. Te amo, filhinho querido, piquituxo da mamãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário